De forma elucidativa e esclarecedora
transcrevo aqui no blog da Cepecro o artigo da escritora Cristina da Costa
Pereira em parceria com Antonio Guerreiro de Faria publicada na revista Études
Tsigane, trimestral e de
número 51, situado a p. 48-63, de 2012. O tema desta edição é "Os
Ciganos na América do Sul" e o artigo se chama "Fausse
identité gitane: un cas brésilien" (Falsa Identidade Cigana: um caso brasileiro).
Este artigo em francês foi traduzido por
Eunice Pissolato e revisado pelos autores.
Falsa Identidade
Cigana: um caso brasileiro
O sincretismo, a integração de diferentes elementos culturais em uma
síntese, é uma característica permanente do processo cultural brasileiro, uma
das marcas mais visíveis desse sincretismo se refletindo na imensa mistura de
raças e de culturas que compõem o Brasil. Um tal processo, já visível na
Europa, é moeda corrente na mistura étnica que caracteriza este país. Se há uma
mistura racial, há um inegável sincretismo religioso nas trocas culturais
estabelecidas entre negros de diferentes procedências que criaram um candomblé
claramente diferente daquele que existe em terra africana. Por outro lado, as
trocas, em terra americana, entre culturas africanas diferentes produziram um
sincretismo religioso entre culturas da África, da Europa e da América, largamente
descritas por aqueles que estudam a Umbanda1. Mas o Brasil não vive
somente de sincretismo religioso. Os sincretismos que se produzem entre
culturas de muitas regiões, Nordeste/Sudeste – nos dois sentidos – são comuns e
refletem as ondas migratórias que se desenvolvem durante os períodos de
escassez nas regiões afetadas pela seca no Nordeste.
Uma dessas manifestações sincréticas está ligada à adoção de valores,
crenças, símbolos e signos os mais variados, pertencendo – de forma real ou
imaginária - à cultura cigana. É o assunto principal deste artigo, que aborda
um fenômeno conhecido, mas ausente dos debates e tendo recentemente acontecido,
sobre os ciganos no Brasil. Nós dizemos debates recentemente acontecidos, pois
foi durante o mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que aconteceram
as discussões para o estabelecimento de uma representação cigana na Secretaria
dos Direitos Humanos.
Os ciganos no imaginário brasileiro
Parece-nos que, além do fato de ser nômade ou sedentária, a comunidade
de Ciganos brasileiros, em sua grande maioria, assume para os não ciganos uma
dimensão mágica, que se afasta dos estereótipos existentes na Europa. A boa
aventura, drabarimos ou drabaripen (romani) ou ainda drabe ou
draba (calon), pode ser a principal responsável dessa dimensão
mágica estereotipada. As figuras da leitora de mãos perambulante ou da vidente
sedentária, que predizem o futuro e fazem “trabalhos de magia” rápidos e caros,
mas com resultados garantidos abundam nos anúncios de jornais ou em painéis publicitários
nas cidades brasileiras. As saias e blusas coloridas, mas também as
indefectíveis sandálias havaianas permitem identificar facilmente a mulher
cigana. Curiosamente, a figura do Cigano é associada aos antigos modelos
europeus, com o brinco na orelha, cabelos longos, o diklo cherro (lenço
de cabeça), a camisa de seda colorida com mangas bufantes à moda húngara ou
romena, cinto largo e botas, uma vestimenta carnavalesca e quente para os
trópicos e que não corresponde de modo algum à realidade atual das bermudas
longas e largas, camisetas e sandálias havaianas. Ainda que os ciganos nas
carroças puxadas por cavalos tenham desaparecido, o próprio governo brasileiro
veiculou o estereótipo na edição de um Manual dos Direitos Ciganos, em cuja
capa se vê Ciganos em uma carroça puxadas por cavalos, como aquelas utilizadas
pelos antigos Ciganos ingleses, mas também pelos não-ciganos tinkers,
desconhecidos aqui. Baseando-se em sinais emprestados da Europa, o governo
brasileiro instituiu por decreto, o dia 24 de maio (dia da celebração, em Saintes-Maries
de la Mer, na Camargue, da chegada das três Marias e de sua escrava Sara Kali,
a “Santa Sara”) como dia dos Ciganos2. Nesse Manual existe uma
representação de Santa Sara apresentada como a “padroeira dos Ciganos”, embora
ela estivesse praticamente ausente da tradição cigana no Brasil há duas
décadas. Podemos então notar que os organismos governamentais, a despeito de
suas boas intenções, não possuem nenhum conhecimento adequado sobre os ciganos,
desconhecem suas tradições, línguas e hábitos. Os estereótipos reduzem a
diversidade de um povo a alguns sinais redutores. É com alguns sinais já
evocados – costumes, nomadismo, fogos e carroças – que a imagem do Cigano foi
construída no Brasil. Um outro sinal mítico seria o violino cigano, reenviando
a uma profissão existente e reconhecida na Europa, mas não no Brasil.
Uma vez enquadrado e pré-julgado, só resta aos ciganos a mesma relação
de fascinação e temor já manifestada em relação à etnia em outras partes do
globo. Além da afirmação de Heider3, observando que “o estranho
provoca resistência estética ou intelectual, pois ele não corresponde às nossas
expectativas”, é ainda possível, com Moreira Leite4, observar a
atração exercida pela detecção do oposto, sublinhando que: “-- na reação
negativa ao estranho, é quase sempre possível descobrir um sentimento positivo
de curiosidade, geralmente escondido sob a reação negativa fundamental. Além
disso, atribuímos ao grupo estranho, além das características negativas, alguns
traços sobre humanos ou fantásticos: mesmo submetidos ao pré-julgamento, o
estranho é muitas vezes descrito como possuidor de alguma força extraordinária,
uma habilidade além do comum.”.
Prosseguindo sobre os traços das causas da atração que exerce a figura
dos ciganos no imaginário brasileiro, deve-se notar a existência da xenofobia e
da xenofilia, seu contrário. Sempre segundo Moreira Leite5, a
xenofilia é “a tendência a desprezar seu grupo e suas normas, ao mesmo tempo em
que afirma a superioridade do grupo estranho”.
Durante os anos 1980, houve a eclosão dos balés flamencos, nos quais os
dançarinos se diziam descendentes dos Ciganos espanhóis, quando sabemos que no
Brasil, encontramos os Calons portugueses ou descendentes de Ciganos
portugueses, mas que os Calés (Ciganos espanhóis) são raros como grupos
representativos. Os dançarinos inventavam nomes, sobrenomes e até adicionavam
aos seus espetáculos danças e músicas de artistas que se diziam “Ciganos” do
grupo rom (Ciganos não-ibéricos), com um outro tipo de costume, um outro tipo
de instrumentos e de canções, numa mistura artística estranha. No caso dos
falsos Ciganos dançarinos, músicos, leitores de mãos (quiromantes) e videntes,
podemos claramente dizer que há uma fraude oportunista. A falsificação representa
uma espécie de valorização do currículo profissional, para alguém que era
unicamente um elemento em busca de status e reconhecimento. Afirmar-se como
Cigano em determinados meios, dava a quem se declarava assim, distinção e
coerência com a atividade exercida.
No Brasil, particularmente nos centros urbanos mais desenvolvidos,
busca-se na falsificação da identidade um aumento de status e um
desenvolvimento da própria identidade, instável, ao contrário da Europa, onde é
praticamente impensável que alguém se declare como Cigano em busca de status ou
de valorização pessoal. Não afirmamos com isso que não exista rejeição aos
Ciganos no Brasil, mas que aqui, ser Cigano, e especialmente nos centros
urbanos, não representa uma ameaça para aquele que se afirma como tal. Em
muitos meios, isso constitui até um elemento promocional, longe de representar
uma desclassificação de identidade pessoal, mas sobretudo um elemento de
distinção, na maior parte do tempo mais positivo que negativo.
Os não Ciganos que se dizem Ciganos desconhecem certamente a
religiosidade, a organização social, os valores, os hábitos, as línguas e as
instituições ciganas, tendo a respeito de todas essas coisas somente uma vaga ideia
tirada da literatura, do cinema e, mais recentemente, das pesquisas em sites da
internet.
Nós vemos aparecer, então, um “povo cigano” que só existe na fantasia
dos imitadores, cujo imaginário, a percepção, o gestual, o comportamento e os
códigos se revelam imitações da etnia cigana.
Umbanda e Ciganos estereotipados
O sincretismo
místico-religioso desenvolvido no Brasil com os sinais pertencentes a esta
construção estereotipada dos ciganos possui algumas raízes facilmente
recuperáveis. Uma dentre elas data dos anos 1970, quando surge, em muitos
centros de Umbanda no Rio de Janeiro e, em seguida em todo o Brasil, a
denominada “falange cigana”6. Se antes, na Umbanda, se encontrava
manifestações de “pretos velhos” e de “caboclos”, clara alusão aos elementos
africanos e indígenas desse culto, agora são os ciganos que são chamados
“entidades”. A esse respeito, o professor de iorubá, escritor e
pesquisador especialista em religiões afro-brasileiras, José Beniste, afirma:
“Eu conheci a iyalorixá de Umbanda Arlete Motta (1945-2003) em
1965. Sua história nos diz que desde a idade de 7 anos ela recebia
manifestações de entidades espirituais e, aos 12 anos, ela abriu seu próprio
templo, primeiramente no bairro de Vila Isabel e, em seguida, no bairro de Lins
de Vasconcelos, na Rua D. Francisca 184. Desde sua infância ela recebia uma
entidade que se chamava Pombagira Cigana, uma forma sutil para a época, tendo o
objetivo de atenuar o medo, ou mesmo o despeito que a sociedade nutria em
relação aos ciganos.
Mais tarde, a entidade se definiu
como a Cigana Carmencita, nativa da Espanha e que se comunicava com as pessoas
com uma mistura de espanhol e português. Ela lia a mão das pessoas e cantava,
sempre para um público bem numeroso.
Eu vinha andando a pé
Para ver se eu encontrava
Minha Cigana de fé
Essa forma de dissimulação,
escondendo-se atrás da entidade Pombagira, teria sido a conduta de outros
médiuns também, que mais tarde eliminaram essa palavra e se definiram com os
seus nomes de origem cigana e rituais específicos. Esse foi o grande papel da
Umbanda junto à sociedade. Integrando em seu universo os personagens agredidos
e que sofriam violência, como forma de recompor a real biografia daqueles que
construíram a história brasileira (Beniste, 2011).
Entre os médiuns que encarnavam
entidades ciganas, há aqueles que, por sua ligação com essas entidades, afirmam
algum parentesco carnal ou espiritual, proclamando-se descendentes de Ciganos,
de uma maneira ou de outra. Estes últimos se intitulam membros de “tribos
cósmicas ciganas”. Assim, a aparição de pretensos – e evidentemente falsos –
líderes ciganos é comum, assim como a realização de “rituais ciganos de batismo
e de casamento”, numa clara atitude de charlatanismo, que não tem mais nenhuma
relação com a Umbanda. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, há um jornal
mensal intitulado “Povo Cigano”, no qual não há nenhum Cigano e cujas páginas
são cegamente ocupadas pelos anúncios de certas mercadorias (bijuterias, vasos,
costumes, shows, vidência e quiromancia). Da mesma forma, entre os grupos
esotéricos, o culto ou a referência aos “Ciganos espirituais” tornaram-se
comuns, durante festas realizadas de preferência em espaços abertos (jardins ou
pátios) com fogueiras e em noites de lua cheia.
A partir dos anos 1980, a quantidade
de videntes e quiromantes que se dizem Ciganos sem o ser, aumenta. Ao contrário
dos Ciganos, que liam as linhas da mão em praças públicas e nas ruas de todo o
Brasil, os falsos Ciganos exercem seu ofício unicamente em suas casas ou em
espaços alugados para essa finalidade.
Entretanto, com relação à Umbanda,
foi possível obter, num site denominado “Povo de Aruanda”, site umbandista, a
existência de 29 entidades femininas, 16 masculinas e ainda 9 Pombagiras
ciganas.
Uma dessas entidades consiste na
assimilação, pelos círculos umbandistas, da figura emblemática de Mamiori palavra que significa avó. Sobre a personagem, Matt Salo nos diz:
“Uma velha com aparência de feiticeira, chamada “mamiori le vesheski
”, a vovó das florestas, que atua como guardiã dos assuntos domésticos. Por
exemplo, não se deve deixar os utensílios sem lavar de um dia para o outro,
porque vovó virá e os jogará sobre as pessoas. Um certo tipo de musgo
encontrado próximo das árvores depois das chuvas, é descrito como o vômito da
feiticeira. As mulheres o recolhem e o utilizam no preparo de um amuleto (baiero)
colocado no pescoço de uma criança para afastar os maus espíritos e as doenças
(Salo, pág. 646).
Em certos grupos ciganos, Mamiori
era designada pelo termo bibi (tia) e analisando as práticas existentes
nesses grupos, Trigg nos diz:
“Como já dissemos, alguns Ciganos desenvolvem uma outra atitude com
relação a Bibi. Eles acreditam também que ela é a fonte de toda doença e
então é preciso que ela receba suas orações, mas em vez de apresenta-la como
velha feiticeira, como ela é representada nos ícones, eles acreditam que ela se
apresenta como uma galinha, cujos pintinhos representam, cada um uma doença
diferente (Trigg, pag. 188).
No site já referenciado, “Povo de Aruanda”,
foi possível encontrar e ainda estabelecer uma lista que retoma muitos
espíritos ciganos encontrados. As descrições são aqui transcritas ipsis
litteris:
Entidades Femininas:
Cigana da estrada, cigana Dalila,
cigana do Egito – Flor de Lótus, cigana Katiana Natasha, cigana Rosa Maria,
cigana Carmen, cigana Carmencita, cigana Cristal, cigana Pogiana, cigana Íris,
cigana Kerumã, cigana Leoni, cigana Madalena, cigana Mamiori, cigana Melani,
cigana Najara, cigana Sámara, cigana Samilia, cigana Samya, cigana Sarita,
cigana Silvana, cigana Sulamita, cigana Sumara, cigana Sunakana, cigana
Vlanira, cigana Vlanasha, cigana Yasmin, cigana Zaira e cigana Zoraide (29).
Entidades Masculinas:
Cigano Igor do Eufrates, cigano
Artêmio, cigano Boris, cigano Damião, cigano Fábio, cigano Iago, cigano Juan,
cigano Michel, cigano Pablo, cigano Pedrovick, cigano Ramires, cigano Ramon,
cigano Rodrigo, cigano Tariri, cigano Tiago e cigano Vladimir (16).
Pombagiras:
Pombagira cigana Sete Saias,
pombagira cigana da Estrada, pombagira cigana da Lua, pombagira cigana Neta da
Encruzilhada das Almas, pombagira cigana Curandeira, pombagira cigana
Esmeralda, pombagira cigana Feiticeira, pombagira cigana Menina e pombagira
cigana Sarita (9).
Na lista de entidades femininas, dois
nomes mereceram nossa atenção: o da cigana Mamiori e o da cigana
Sunakana. Entretanto, a descrição que o site faz de Mamiori é diferente
da de Trigg e Salo:
“A lenda cigana conta que há séculos havia uma cigana que tinha o poder
de detectar e curar qualquer tipo de doença, tanto física quanto espiritual e
que seu maior sonho era ser mamãe. Havia longo tempo que ela era casada e não
conseguia ter filhos. Um dia, enquanto ela observava as crianças brincarem no
acampamento, ela foi invadida por uma tristeza imensa. Ela chorou. Vendo um
arco-íris, ela pediu a Deus que lhe concedesse a graça de ser mãe e prometeu
que, se esse milagre acontecesse, ela dedicaria sua vida a ajudar as mulheres
durante o parto e a curar aquelas que tivessem uma doença qualquer, física ou
espiritual. Deus, em sua infinita bondade, lhe deu sete filhos. Depois do
nascimento do seu primeiro neto, que ela ajudou a nascer, a Cigana abençoou
todas as pessoas do acampamento e dirigiu-se para a floresta onde brilhava um
arco-íris. Ela nunca mais foi vista. Cada vez que um Cigano está doente e vê um
arco-íris, ele invoca o espírito de Mamiori. Ela é vista como a
mensageira da cura, a dama das sete ervas. Acreditamos que ela vem no arco-íris
visitar o mundo da Terra, desejando a todos a maior riqueza que o ser humano
pode ter: a SAÚDE!!! (Tirado do livro “Como descobrir e cuidar dos ciganos do
seu caminho”).
Ana da cigana Natasha
Outro nome de entidade feminina que
mereceu nossa atenção é o da cigana Sunakana. A Cigana Sunakana é citada nesse site
como a rainha do ouro e é qualificada assim. Seguem as informações que pudemos
ler:
Cigana Sunakana
A rainha Sunak é a rainha do ouro.
Ela usa uma saia feita de véus amarelo claro, amarelo ouro e amarelo queimado.
Ela usa uma flor amarela natural ou rosas amarelas de tecido brilhante.
Sua tiara, que faz um semicírculo em
sua cabeça partindo das orelhas, é uma trança de fitas em diferentes
tonalidades de amarelo, com fitas presas. Em seu pulso esquerdo ela usa um véu
semelhante a essa trança. Uma blusa amarelo claro, com mangas bufantes e
casinhas de abelha em ponta em torno do pescoço. Usa um tamborim adornado de
fitas amarelas. Suas joias são um colar com moedas amarelas penduradas, muitos
braceletes e pulseiras, brincos de ouro e, em volta dos tornozelos, uma
corrente em ouro com um topázio.
Esta cigana tem os olhos
castanho-esverdeados e os cabelos castanho-claros cacheados. Ela tem a pele
morena cara, suas mãos e seus dedos são longos, com unhas longas e bem
cuidadas. Ela não usa esmalte vermelho e sim rosa claro. Esta cigana é a dama
das moedas de ouro. Ela é a protetora do ouro e do ventre das mulheres. Em Cuba
há uma procissão de Nossa Senhora das Regras onde Sunakana foi batizada segundo
os rituais ciganos. Seu dia é 8 de maio e ela é uma das favoritas de Santa
Sara.
Amigos, ajudem-nos a dar os créditos
a quem merece, infelizmente não conheço o autor.
No dialeto calon, sunakai significa
ouro ou bracelete. Em romani, sunakano significa “feito de ouro,
dourado”. Sunakana é certamente uma adaptação portuguesa da palavra
original.
Notas
1.
Religião nascida no Rio de Janeiro no
fim do século XIX e início do século XX, que inicialmente misturava elementos
espíritas e bantos, esses já moldados sobre elementos jeje-iorubas (?); hoje
ela se apresenta dividida em diferentes cultos caracterizados por influências
muito diversas (por exemplo indigenistas, católicas, esotéricas, cabalísticas,
etc.) (Dic Houaiss, 2009)
2.
O dia mundial do Cigano é celebrado
em 8 de abril, dia do massacre dos ciganos em Auschwitz-Birkenau
3.
In Moreira Leite p. 16
4.
Ibidem, p.16
5.
Ibidem, p.17
6.
Segundo a Umbanda, grupos de
espíritos que, quando eram seres humanos, teriam sido da etnia cigana
Uma pesquisa de campo
Para constatar in loco as ocorrências
do culto a Santa Sara no Brasil e os sincretismos ciganos realizados na
Umbanda, escolhemos o templo de Umbanda denominado Tenda Irmãos do Oriente e o
Arpoador, no bairro de Ipanema, no Rio de Janeiro. Eis o resultado de nossas
observações:
Tenda Irmãos do Oriente
O lugar
Tendo sabido por uma pessoa conhecida que havia um Templo Irmãos do
Oriente, instituição de Umbanda relevante da linha do Oriente no bairro
Botafogo, apressamo-nos a obter um convite para assistir a uma das sessões.
Fomos informados por essa pessoa que Santa Sara se manifestava por meio de um
médium nesse templo e já fazia parte do seu panteão. Tendo obtido o
convite e chegando no templo no dia e hora pré-determinados, ficamos surpresos
com a organização do estabelecimento, com comodidades confortáveis, uma
cantina, uma livraria de livros espíritas e de Umbanda, uma secretaria, uma
obra social e uma frequência de cerca de 300 pessoas sem contar os médiuns, os
praticantes pertencendo à classe média e média alta.
Antes do início do ritual, nós nos informamos sobre o médium que recebe
Santa Sara. Disseram-nos que Santa Sara não se manifestava mais e que, no seu
lugar, havia o Cigano Vladimir, incorporado pelo médium Ferreira. Nós
procuramos o médium Ferreira e nos apresentamos a ele como pesquisadores e lhe perguntamos
se ele incorporava Santa Sara. Ferreira usava a camiseta de uma empresa de
comunicações, calças jeans e um brinco na orelha esquerda. Ele nos respondeu
que não, mas que ele organizava festas ciganas, com culinária, bebidas e danças
ciganas realizadas por um grupo de Ciganos da cidade de Niterói. Ele respondeu
também que Santa Sara se incorporava em uma médium que não frequentava mais a
casa e que, no início, ele incorporava o Cigano Pablo, da Bulgária e que, mais
tarde, o espírito do Cigano Vladimir, de origem russa, veio também se
incorporar nele, visando trabalhos de caridade e de ajuda ao próximo em
dificuldade. Nós lhe perguntamos se ele era Cigano e ele respondeu que não, mas
que ele admirava a cultura e os valores ciganos e que ele não pedia dinheiro
pelas consultas com a entidade e nem pelos trabalhos. Declarou também que
quando as Ciganas pediam dinheiro pelas consultas, elas acabavam perdendo sua
mediunidade e, por essa razão, ele não pedia nada.
O ritual
O ritual marcado para às 20h30 foi precedido por uma palestra começada
às 19h30, sobre um texto evangélico-cristão escrito por um dos participantes do
painel que presidia a sessão. Depois da palestra, hinos e cânticos foram
cantados pela assistência e, logo após os hinos, as consultas dos participantes
da assembleia com as diferentes entidades incorporadas começaram.
Nós nos dirigimos a uma das auxiliares do culto e lhe dissemos que
gostaríamos de falar com o Cigano Vladimir. Após uma breve espera, fomos
conduzidos ao médium incorporado, que usava uma camisa branca. O Cigano
Vladimir, russo, nos falou em espanhol. O melhor seria dizer em “portunhol”,
uma mistura de palavras portuguesas e palavras pretensamente espanholas. A
entidade nos examinou, falando sem interrupção num português à espanhola,
pegando nosso pulso e nos aplicando passes para a limpeza de energia. A
entidade chamava-se Cigano Vladimir, de origem russa, pensamos que ela deveria
conhecer o romani. Nós nos dirigimos então a ela e dissemos:
- De duma mange and amari chibé (Fale-me
em nossa língua)
A entidade ignorou minha pergunta e continuou a me benzer e afastar os
maus espíritos, sempre em “portunhol”. Eu continuei a lhe falar:
- Tu san rom, de duma and amari chibé (Você é cigano, fale na nossa
língua).
A entidade
respondeu em espanhol à portuguesa:
- Eu
conosco muchos idiomas e já vivi en el deserto, já fui beduíno.
Diante da ignorância do romani manifestada tanto pelo médium quanto
pelo espírito cigano, não pedimos mais nada, limitando-nos a sorrir e a
agradecer pelo trabalho espiritual realizado e saímos do templo, sem nenhuma
outra questão. É preciso fazer notar que nenhum dinheiro nos foi pedido, nem
pela instituição que abriga o ritual, nem pelo médium que incorporou o
espírito.
Dentre os médiuns que incorporavam entidades ciganas ou dentre as
pessoas que afirmavam serem protegidas por essas entidades, é muito comum ouvir
afirmações como: “minha Cigana”, “tenho uma Cigana que me acompanha”, “meu
Cigano”.
No nosso ponto de vista, o possuído, na impossibilidade de tornar-se um
Cigano, pode exacerbar sua xenofilia, quando deseja tornar-se possuidor de
alguma coisa que, no fundo, não se deixará jamais “possuir” que é a figura
estereotipada do (a) cigano (a) transfigurada em entidade. Esta última poderá
sempre ser contatada através dos procedimentos rituais próprios de uma
confissão religiosa ou seita iniciática.
Arpoador
Em 24 de maio fomos ao Arpoador, onde sabíamos que rituais ciganos
organizados pela Fundação Sara Kali aconteciam em homenagem a Santa
Sara. Lá chegando, vimos se desdobrar diante de nós um espaço aberto pela
Prefeitura do Rio de Janeiro, onde se encontrava a imagem de Santa Sara Kali
próxima de uma gruta, que buscava sugerir a atmosfera de Saintes-Maries de
la Mer, na Camargue.
A maior parte dos participantes do encontro eram mulheres de meia idade
e alguns jovens. Algumas mulheres, em trajes “ciganos”, acompanhadas por homens
de chapéu e trajados de negro, sentavam-se diante de tendas com objetos à
venda: artesanatos, amuletos, bijuterias e camisetas com a imagem de Sara Kali.
Não longe dali havia uma mesa pequena com pequenos copos plásticos com vinho
para os participantes. Sobre outra mesinha de plástico havia um cesto com os lilá
(pequenos prospectos distribuídos nas ruas pelas ciganas pregando suas virtudes
de vidência e quiromancia). Nos lilá, uma prece ou pedido a Deus estava
impressa em texto bilíngue romani/português e, no verso, o anúncio “Se você
quer conhecer um pouco mais sobre a verdadeira história, os hábitos e a cultura
do Povo Cigano, entre em contato com uma verdadeira Cigana. Mirian Stanescon
coloca-se à sua disposição para conferências, cursos, workshops, festas, bufês
e rituais deste povo milenar”. E-mails e números de telefones da Fundação Sara
Kali constavam para os contatos. Nesse momento, Mirian Stanescon, cigana kalderashi,
presidente da Fundação Sara Kali, fazia um discurso pedindo que as bênçãos de
Santa Sara caíssem sobre os participantes, proclamando que, em nome de Jesus
Cristo, os presentes seriam numerosos, os donativos não eram obrigatórios e
cada um ajudaria na manutenção da festa na medida das suas possibilidades.
Depois do discurso, as músicas ciganas começaram, cantadas não em
romani ou calon, como poderíamos crer, mas em português ou em espanhol.
O cantor de chapéu e vestido de preto, assim como os dançarinos, diziam-se
todos calons. Os participantes acompanhavam a música com palmas
ritmadas, palmas em ostinato percussivo, apoiando-se unicamente sobre os
primeiros tempos das medidas. As batidas de palmas à contratempo, tão caras aos
verdadeiros ciganos da Andaluzia estavam completamente ausentes. As melodias
eram muitas vezes acompanhadas pela sequência harmônica Am/G/F/E,
características do flamenco espanhol, mas ausente nas músicas dos Calons
brasileiros. O cantor cantava acompanhado de um karaokê, as músicas estando
previamente gravadas em estúdio, não havia música ao vivo.
Perto de nós havia uma jovem morena com uma agenda na mão, que
conversava com um indivíduo com uma camisa quadriculada, mangas longas, um
chapéu e muitos anéis. Ela dizia ter um avô cigano e queria contatar o povo
para reencontrar suas raízes. O homem lhe respondeu que ele era Calon e
organizava festas ciganas típicas. Por educação, afastamo-nos da conversa nesse
momento, prestando atenção nas reações entusiasmadas do público para o par de
dançarinos fazendo evoluções evidentemente coreografadas. Quando a jovem se
afastou para conversar com as mulheres em trajes ciganos, nós nos aproximamos
do Calon e tivemos a seguinte conversa com ele:
_ Tunsa
si calom? (Você é calom?)
_ Como?
_ Tunsa
nakera i chibe cali? (você fala a língua dos calons?)
_ Ah .
bom.
E ele
desapareceu rapidamente da nossa vista, aparentemente apavorado
Os autores deste ensaio consultaram a bibliografia especializada e
mantiveram correspondência com Ciganos e não Ciganos de organizações
representativas na América latina, Europa e Estados Unidos, mas não encontraram
um comportamento semelhante àquele que é apresentado neste texto e que seja,
quantitativamente representativo em outros países além do Brasil. Como ressalta
muito justamente o professor Ático Vilas-Boas da Mota2, as atitudes
de xenofilia cigana são raras no continente europeu.
Entrevista com Átila Nunes Neto sobre a
relação entre Umbanda e Ciganos3
1 - Quais são as datas das primeiras manifestações
de entidades ciganas na Umbanda?
No
começo, os ciganos eram “confundidos” (sic) com os Exus, então, à medida que o
“povo das ruas” começou a se manifestar nos templos, os ciganos foram notados
também. Os marinheiros, os boêmios e os ciganos eram algumas das entidades
manifestadas. Creio que as manifestações começaram nos decênios 1920 ou 1930. Atualmente,
há templos que fazem giras específicas para os Ciganos ou os Povos do Oriente.
2 - Existe uma documentação confiável que possamos
consultar a esse respeito?
Se
eu fosse fazer uma pesquisa sobre esse assunto, começaria pelos antigos pontos gravados,
eles são a melhor forma de registro. Há músicas muito antigas que podem
comprovar essa ideia. Já que o material literário é raro, os pontos gravados
são a melhor fonte, há também as orações para os ciganos.
Notas
1.
Segundo o espiritismo, pessoa capaz
de se comunicar com os espíritos (Dic Houaiss, 2009)
2.
Prof. Ático Vilas-Boas da Mota foi
Presidente da Comissão Nacional do Folclore (IBECC – UNESCO 1992-1999) e autor,
dentre outros, de Ciganos – Antologia de Ensaios – Thesaurus, 2004 e de artigos
sobre a etnia
3.
id
Bibliografia
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Beniste, José Depoimento Pessoal a Cristina da Costa
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Mota, Ático Vilas-Boas da, Depoimento
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